quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Apagão da Verdade

Os que me conhecem pessoalmente, ou mesmo pelo Face ou Twitter, sabem que venho acompanhando e alertando sobre os riscos ao nosso sistema elétrico no Brasil.

No ano de 2014, quando passei a acompanhar o volume dos reservatórios (Sabesp e ONS), já alertava quanto a necessidade de um racionamento de água em SP e de, no mínimo, uma campanha nacional de redução do consumo de energia elétrica.

Claro que em ano de eleição, nenhum dos candidatos à reeleição sequer cogitou a ideia. Pior para a população.

A despeito da situação da água em SP estar crítica (ou mesmo desesperadora), venho dar meu palpite especificamente no sistema elétrico por ser minha área de formação e especialização. Vamos lá.

No dia 19/01, o que se dizia impossível aconteceu: 11 estados sofreram um apagão parcial de energia. Podemos ver abaixo a explicação oficial do ONS em seu site:

Nota à Imprensa (19/01/2015)
No dia 19 de janeiro, a partir das 14h55, mesmo com folga de geração no Sistema Interligado Nacional (SIN), restrições na transferência de energia das Regiões Norte e Nordeste para o Sudeste, aliadas à elevação da demanda no horário de pico, provocaram a redução na frequência elétrica. Na sequência, ocorreu a perda de unidades geradoras nas usinas Angra I, Volta Grande, Amador Aguiar II, Sá Carvalho, Guilman Amorim, Canoas II, Viana e Linhares (Sudeste); Cana Brava e São Salvador  (Centro-Oeste); Governador Ney Braga (Sul); totalizando 2.200 MW. Com  isso, a frequência elétrica caiu a valores da ordem de 59 Hz, quando o normal é 60 Hz. Visando  restabelecer a frequência elétrica às suas condições normais, o ONS adotou medidas operativas  em conjunto com os agentes distribuidores das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, impactando menos de 5% da carga do Sistema. A partir das 15h45, a situação foi totalmente normalizada. Amanhã, dia 20 de janeiro de 2015, às 14h30, no Rio de Janeiro, o ONS se reunirá com os agentes envolvidos para analisar a ocorrência.
Assessoria de Planejamento e Comunicação do ONS
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O ONS e o Ministro de Minas e Energia correram para botar a culpa em um desligamento "anormal" de algumas usinas como causa do problema. Ambos ainda deixam claro que "há energia de sobra no Brasil". A verdade é que o problema real é a falta de capacidade de geração de energia, mesmo que temporária, de atender a demanda de pico no país.

Segue abaixo, com base nas informações oficiais e dados não oficiais, uma hipótese sobre os acontecimentos do dia 19/01:

Primeiro, vamos entender o que é a frequência. No sistema elétrico, diferente de uma pilha ou bateria, o polo positivo e negativo se alternam, em ciclos de 60 vezes por segundo - 60Hz. A frequência é controlada pela velocidade em que os geradores giram. Os geradores devem girar à uma certa velocidade para manter a frequência correta. Pela Aneel, para manter a qualidade de energia, a frequência do sistema deverá ficar entre 59,9Hz e 60,1Hz. 

O interessante é que, assim como uma composição de locomotivas, todas as máquinas geradoras conectadas estão sempre na mesma velocidade. Não dá para uma andar mais rápida que a outra! Todos rodam à mesma velocidade*!

Isso torna possível tecer uma análise dos fatos. Quando o ONS informa que um apagão se dá por um curto-circuito, um raio, uma atuação indevida de proteção em alguma parte do sistema fica praticamente impossível os consumidores descobrirem o que ocorreu de fato. Mas como agora o problema foi uma redução da frequência, qualquer subestação de consumidor com uma oscilografia – que grava os parâmetros elétricos - consegue ter uma boa visão dos acontecimentos

Dito isto, vamos seguir:

Na semana passada, anterior ao desligamento, o sistema, no que diz respeito à frequência, se comportou de maneira totalmente regular:



Fonte: Particular

Podemos observar que a frequência não ficou abaixo de 59,90Hz nem acima de 60,10Hz, conforme normas.

Porém, na segunda feira, o calor excessivo fez com que houvesse recordes de demanda no sistema SE/CO e Nordeste, conforme diz o relatório oficial do ONS:


Fonte: ONS


O que isso impacta no sistema e na frequência? Simples! Quanto mais carga, mais potência o sistema exige. É como um carro em uma rodovia. Você vem em uma reta mantendo a velocidade constante, pressionando o acelerador de forma constante. No momento que em chega uma ladeira, para manter a mesma velocidade, você precisa apertar mais o acelerador.

No caso das usinas, ou aumenta a quantidade de combustível para as térmicas ou quantidade de água para hidrelétricas.

É aí que a explicação oficial começa a divergir. Para a frequência cair, é necessário que se tenha perdido geração (algum problema em usina ou linhas de transmissão) ou não tenha capacidade de gerar o que é solicitado.

A explicação do ONS e Ministro de Minas e Energia é que algumas usinas se desligaram automaticamente causando a redução da frequência:

… a partir das 14h55, mesmo com folga de geração no Sistema Interligado Nacional (SIN)...
... ocorreu a perda de unidades geradoras nas usinas Angra I, Volta Grande, Amador Aguiar II...


Ora, o que podemos ver abaixo é que desde as 13:00 o sistema começou a apresentar uma redução de frequência. Tentou-se corrigir quando a frequência chegou à 59Hz (provavelmente adicionando mais geração por volta das 13:30), mas não foi suficiente para evitar a queda contínua da frequência


 Fonte: Particular


Exatamente às 15:00 horas, conforme informado pelas concessionárias, o ONS deu a ordem para que fossem cortadas cargas. Ou reduz-se a carga ou o sistema inteiro entra em colapso. Assim, o sistema pode iniciar a recuperação, mesmo com outro princípio de afundamento por volta das 16:45.
Abaixo, podemos ver mais detalhadamente o período mais crítico. Segundo informado, algumas usinas se desligaram e este fato pode ser real, uma vez que por volta de 14:45 a redução na frequência se intensificou. A diferença é que, ao contrário do que disse o Ministro Braga, não foi por falha. Os geradores são projetados para trabalhar a 60Hz. Mesmo pequenas diferenças na velocidade das máquias são arriscadas, podem causar danos à mesmas. Por isso, quando a frequência cai, é normal a proteção desligar o gerador. Cada máquina tem sua característica e a proteção é ajustada levando isso em conta. Por isso Angra I pode ter se desligado e Angra II, por exemplo, não.


Fonte: Particular

Na prática, o que foi feito foi desconectar alguns vagões da composição antes que tudo parasse.

Por fim, tanto o ONS quanto o Ministro afirmaram que existe energia de sobra (no norte e nordeste). Só não havia, por motivos mal explicados, como transportá-la para o sudeste e centro oeste.

Mais uma vez os fatos desmentem as entrevistas. Com base no relatório oficial, o Norte está sim exportando energia (assim como o sul), mas o nordeste não! O nordeste está recebendo energia, assim como o sistema SE/CO

Fonte: ONS


A pá de cal na explicação oficial vem mais uma vez do ONS. O limite de intercâmbio entre N/NE para o sistema SE/CO é de pelo menos 3.900MW. Algo muito sério deveria ocorrer para não utilizar os outros 2.000MW que o sistema SE/CO tanto precisava para manter todas as cargas ligadas, já que no dia, a transferência era de apenas 1.735MW.


Fonte: ONS



Muito mais provável a incapacidade dos sistemas Norte e Sul de aumentar a geração para atender a geração deficiente do SE/CO e NE!


O que podemos ver com os dados do próprio ONS e alguns dados de consumidores de grande porte, é que o sistema elétrico brasileiro não foi capaz, no dia 19/01, de atender a demanda de pico. Com os reservatórios extremamente baixos (máquinas paradas e máquinas sem poder operar em sua capacidade máxima devido à “falta de força” das águas), aliado a uma dependência forte do sistema hidrelétrico, estamos caminhando para o mais sério colapso do sistema elétrico brasileiro,

Resumindo: Não, não temos excedente de energia. Não, não havia capacidade de geração no Nordeste (ele recebia parte de energia do Norte). Não, os eventos não se iniciaram às 14:48 com desligamentos de usinas e sim às 13:00 com redução da frequência causada por carga maior que a geração. Não, o sistema norte-sul tem capacidade de transferir 3.900MW e no momento crítico (15:00) estava transferindo somente 1735MW. Havia, salvo evento sério no sistema, capacidade de transferir mais potência do Norte para o SE (se houvesse capacidade de geração – que não havia).

É hora de decretar um racionamento, doa a quem doer. A hora de pedir à população que economize energia ficou em 2014. Ou racionamos ou corremos o risco de ficarmos seriamente prejudicados em 2015. São Paulo está com  falta d'água e pagando o preço caro da incompetência. Não podemos deixar o sistema elétrico “nas mão de Deus” como reza o Ministro Braga. Energia não tem volume morto!

* Os RPM das máquinas variam com o número de polos, mas a frequência é a mesma.

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